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''O magistrado que lidera a investigação a José Sócrates é um homem minucioso, concordam todos os que já trabalharam com ele. Mas é também essa característica que torna longos e pesados todos os processos em que está envolvido.''

Samuel Silva, PÚBLICO.


Na Idade Média, os ''scriptoria'' e bibliotecas dos mosteiros e conventos, das colegiadas e das ordens militares, animavam-se com os sussurros dos fólios a escorregarem uns sobres os outros, num frenesi impetuoso e diligente de frades e doutores na procura compulsiva de provas da existência de Deus e de indícios que atestassem a fonte, a origem e a solidez dos dogmas.
Foi um árduo esforço, mas debalde, que, na ausência de frutos e uma vez que o alcance da prova parecia de dia para dia e de ano para ano mais remoto e a matéria mais inalcançável à sagacidade humana, contaminou as alvoradas da modernidade, quando os sábios passaram a rebuscar os mesmos cartapácios na demanda de provas ou fugazes indícios de que Deus não existia.
Do lado de fora deste titânico labor, fora da obscuridade da leitura, na solheira, centenas de frades campónios e de servos arrancavam aos campos bravios, rasgados pelo labor das relhas e das bestas, o sustento daquele Deus que morava nos livros.
Será sempre um juízo comprometido se quisermos decidir quem trabalhava mais, se os sábios nos livros se os campónios nos campos. O certo é que, em breve, na medida em que Deus parecia mais inalcançável, os campónios acusavam os ''scriptores'' de impiedade e de andarem à procura de Deus onde não havia luz para o enxergar. De tanto lerem, os ''scriptores'' não rezavam, não liam o Evangelho que haviam trocado por Aristóteles, nem viam Deus desabrochar na Primavera e chegar nos bandos de passarada.
Foi então que a Europa se encheu de bandos de mendicantes, que abandonaram os ''scriptoria'' e as universidades para procurarem Deus nas bochechas rosadas das raparigas do campo. Outros, ainda, abandonaram Deus e os livros para procurarem o diabo nas almas dos bruxos.


Vem isto a propósito de um procurador da República que, não tendo ainda alcançado sucesso no ímpeto e afã de comprometer a República todinha no crime de um só malandro, todos louvam, todavia, por ter mergulhado na penumbra da escravidão. Escravo do seu propósito e afá, embrulhado e afogado em miríades de fólios de milhares de cartapácios, o procurador não tem já tempo para rezar, para ler umas passagens sumárias do Evangelho. E, ainda assim, quer alcançar Deus e provar-nos a sua existência.
Eu, que também andei anos alucinado a procurar indícios dos lusitanos pelas crónicas, compreendo que nem um teólogo nem um procurador da República podem substituir a prova pela exibição das mãos calejadas pelo trabalho de desfilar fólios dos cartapácios.

Do que o homem precisa é de apanhar ar e sol.

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