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O MNA decidiu adquirir este conjunto de peças de ourivesaria dado o seu valor comercial intrínseco (...)

(Luís Raposo)

 

Vou, por razões pragmáticas, traduzir este novo excerto da notícia de Conceição Lopes e Raquel Vilaça.

‘’No que respeita aos três ‘’machados’’, o facto de serem similares e estandartisados (embora de diferentes tamanhos e pesos, o maior com um peso três vezes superior ao menor), juntamente com o contexto, faz deles mais do que meros machados. A sua presumível utilidade funcional deve ter sido subordinada ao seu valor de troca. Acresce ainda que a sua forma distancia-os da cronologia tardia atribuída ao resto colecção. Numa loja de antiguidades ou no gabinete de um coleccionador, seriam classificados como sendo da Idade do Bronze inicial.’’

A observação é deveras subtil.
É bem possível que, se o achador ou achadores do tesouro o apresentassem a um coleccionador ou antiquário, tivessem sido logo confrontados com algum cepticismo. Alegariam de imediato que aqueles machados não se integravam na cronologia nem no contexto cultural atribuível aos artefactos de ourivesaria. Sugeririam também que as contas e os pesos em bronze não se coadunavam nem com os machados nem com os artefactos de ourivesaria, são ‘’trouvailles’’ correntes em ambiente castrejo da primeira Idade do Ferro, mas poderiam romanos. A fíbula é ‘’hallstática’’.

O antiquário ou o coleccionador que faria essa sugestão ou manifestasse essa reserva não estaria talvez habilitado para resolver a dissonância com a subtileza com que o fizeram as duas arqueólogas, nem estaria porventura interessado em resolvê-la mas em acentuá-la, pois ela, desmanchando o conjunto e a narrativa do achado, afectaria drasticamente o patamar de que partia o preço.
Uma especial referência para as aspas aplicadas pelas autoras a ‘’machados’’. Sendo o conjunto um tesouro, aquilo não são machados, são objectos de troca.

Na narrativa das arqueólogas, para os achados serem um conjunto e concomitantemente um tesouro, os machados teriam que deixar de ser machados, teriam que perder referência à sua utilidade funcional e transformarem-se em objectos de troca, o que na verdade passaram a ser depois de achados.
Na verdade, o esmo dos achados que constituem o tesouro só pode ser arqueologicamente considerado um conjunto aceitando como bom e inquestionável o postulado da narrativa do achado.
Como atrás já sugeria, um arqueólogo que decidiu integrar no objecto alcançável pela sua actividade os achados circunstanciais, provenientes da actividade desenquadrada da intervenção arqueológica propriamente e estatutariamente dita, deve conhecer em profundidade as circunstâncias em que esses achados ocorrem.
Como procedem os pesquisadores que recorrem a um detector de metais? Em que circunstâncias ocorrem os achados circunstanciais no decurso de trabalhos agrícolas, de trabalhos de construção civil, sobretudo relativos à abertura de fundações, de preparação para plantações industriais de floresta? Estradas?
Em que circunstâncias ocorrem, quando com ou quando sem a intervenção de arqueólogos?
Mais adiante desenvolverei exaustivamente e com detalhe estas questões.

Mas, circunscrevendo-me ao achado do tesouro de Baleizão, tipificando o achador com referência ao que desde logo foi a narrativa dos meios de comunicação, mas também referindo várias abordagens de Conceição Lopes, tentemos caracterizá-lo e as circunstâncias mais prováveis dos seus achados.

Um pesquisador munido de um detector de metais apenas em condições excepcionais, muito excepcionais, está habilitado a caracterizar o contexto em que ocorre a sua pesquisa. Pode saber que num dado lugar existem vestígios arqueológicos e que esses vestígios se associam a uma dada cronologia e a uma dada cultura de relação com o território. E, assim sendo, saber que o seu labor será recompensado. Que encontrará umas moedas, uns artefactos metálicos, algo mais se for bafejado pela sorte de a cova que faz para extrair a massa metálica que o detector assinalou revelar ainda algo que, da sua perspectiva, que é a do retorno do seu labor, possa mobilizar o interesse de coleccionadores, antiquários ou arqueólogos abrangentes.
Ele abre uma cova no exacto local onde o seu detector assinalou a presença de metais. O detector assinala também, aproximadamente, a profundidade da jazida. O seu propósito é recolher os artefactos assinalados pela forma mais eficiente ao seu alcance. Não perde tempo para proceder à prospecção da envolvência nem das estruturas em que o artefacto assinalado jaz. Se na circunvizinhança do artefacto assinalado houver um vaso cerâmico com alguma coerência como mercadoria, recolhe-o também. É mesmo possível que deduza ou interiorize a narrativa de que existia, na jazida, uma relação coerente entre o artefacto metálico e o vaso cerâmico ou a sua ruína.

O pesquisador de objectos arqueológicos não necessita, por norma, de apresentar os seus achados aos arqueólogos nem de acordo com os seus critérios. A minha experiência elucidou-me de que tanto o pesquisador e achador quanto o antiquário e o coleccionador estão inamovivelmente convictos de que sabem mais do que os arqueólogos, ou sabem de forma ou maneira diferente, porque conhecem coisas com que os arqueólogos nem sonham.
Não seria honesto se não admitisse que por vezes o pesquisador e achador e o coleccionador terão alguma razão, como alegarei adiante. Mas para o que interessa é oportuno deixar bem claro que só se um arqueólogo se interessar pelos seus achados e daí lhe vier algum reconhecimento um pesquisador reformulará a sua narrativa para a coadunar com os critérios do arqueólogo.

O que pretendo deixar claro é que nenhum coleccionador ou antiquário aceitaria o esmo de achados que vieram a constituir-se em conjunto e tesouro de Baleizão aos olhos da arqueologia como um conjunto ou um tesouro. Para um antiquário ou um coleccionador tratar-se-ia de um colar e uma bracelete em ouro, três machados em bronze e mais umas ‘’trouvailles’’. A partir de então, o antiquário e o coleccionador, construiriam as suas próprias narrativas, sem convencionarem com o achador a conformidade entre umas e outras.

Vamos sintetizar o que, neste ponto, está em causa.
Os trinta e um objectos que constituem o tesouro de Baleizão não têm, do ponto de vista de uma análise intrínseca isenta, qualquer associação cronológica ou cultural entre si se não partirmos do postulado de que os três machados em bronze estavam ali, depois de perderem referência à sua utilidade funcional, como bens de troca. Aceitando este postulado haveria que interrogar qual seria o valor de troca das restantes ‘’trouvailles’’ e imaginar um contexto em que, talvez um agiota, recolhesse como tesouro aquela ‘’tralha’’ a esmo. Teríamos que conjecturar um contexto em que um machado de bronze andasse perdido alguns séculos após ter perdido a sua utilidade funcional para ser recuperado como valor de troca.
O único argumento em abono de que tal esmo constituía um tesouro, um espólio reunido com o exclusivo fim e propósito de constituir um bem de troca, seria o postulado narrativo de que irromperam na actividade de um achador no mesmo lugar e momento, dentro do mesmo vaso cerâmico.
A primeira diligência que um arqueólogo deveria ter empreendido, ao dispor-se a apresentar os achados como um conjunto e um tesouro, seria proceder a um exaustivo levantamento do lugar e à recolha de toda a informação alcançável sobre o vaso cerâmico. E apresentar com coerência e de acordo com os critérios próprios da arqueologia, em ambiente editorial próprio para que pudesse sujeitar-se ao escrutínio da comunidade científica, os resultados dessa diligência. Os jornais e a tv não me parecem os lugares próprios.

As arqueólogas Conceição Lopes e Raquel Vilaça sabem que, mesmo que subsistisse na narrativa e para lhe conceder a solidez da verosimilhança o vestígio material e inamovível do vaso cerâmico, vulgo ‘’pote’’, os arqueólogos mais impertinentes não deixariam de sugerir reservas à aceitação de que aquele ‘’pote’’ fora a jazida daquele tesouro.
A que tipologia se deveria circunscrever o ‘’pote’’? Compatível com que cronologia? A dos machados? A do colar e da bracelete? A das restantes ‘’trouvailles’’? Em que era se pode supor que aquela ‘’tralha’’ pudesse ter sido reunido como tesouro?
Estas questões toleram poucas ambiguidades. Ou lhes respondemos para estatuir a ‘’tralha’’ como conjunto e tesouro ou não temos meios para lhes responder e assumimos que é arqueologicamente conveniente que aquilo seja um tesouro.

Mas porque seria arqueologicamente conveniente que aquilo fosse um tesouro?

Se eu andasse encolhido por danos que possa causar a mim próprio, suspenderia esta reflexão neste passo.
Mas quero desde já deixar claro que não quero causar danos a ninguém. Mas por isso devemos sentir o apelo de desmantelar todas as hipocrisias e ambiguidades.

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