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A falta de pudor atingiu de forma fulminante as instituições da República.

 

As declarações proferidas por Joana Marques Vidal, Procuradora Geral da República, na apresentação pública do relatório da PGR sobre a violação do segredo de justiça são, não apenas alarmantes, mas inadmissíveis.

Alegando uma espécie de pragmatismo, da mesma ordem do que o governo tem alegado para contestar a Constituição da República, Joana Marques Vidal, se pudermos fazer fé no que Micael Pereira, EXPRESSO, extraiu das suas declarações, centra-se em dois tópicos:

 

Primeiro, a Procuradora questiona a legitimidade, ou conveniência de aplicar aos jornalistas o que a Lei geral e os procedimentos judiciais determinam que se aplique à universalidade dos cidadãos, no que respeita a medidas de recolha de prova e vigilância, como são as escutas telefónicas. Para deixar bem exposta a sua doutrina pragmaticista, radicalmente positivista, política, no que respeita à interpretação e aplicação dos procedimentos de administração do direito processual, declara: "O equilíbrio entre a liberdade de expressão, o respeito do direito à privacidade  dos cidadãos e os interesses da investigação tem de ser tratado com pinças."

 

A expressão, no seu contexto, é sintomática. Parece sugerir que os jornalistas devem ser tratados com ‘’pinças’’. É, no mínimo, infeliz, no máximo trágica e despudorada.

 

Todavia, de seguida, Joana Marques Vidal propõe um debate desinibido sobre questões mais delicadas ainda, parecendo propor como legítima a prática das buscas nas redacções, não se explicita em que contexto pelo que se deduz uma prática rotineira.

 

Parece-me bem óbvio que introduzir neste momento histórico do sistema judicial português estes debates seria não apenas inesperado mas denuncia a óbvia intenção de proceder a propostas normativas, ou de revisão normativa, que não se vão suportar nos resultados de qualquer debate, pois um debate desta natureza, mobilizando todos os interessados ou envolvidos dentro da comunidade, nomeadamente da comunidade judicial, não se realizaria no prazo útil que o relatório sugere.

 

Vou intercalar aqui uma breve reflexão.

 

No âmbito das opções doutrinárias positivistas que orientam o sistema judicial português, a mim, como cidadão, assiste o direito de aplicar o meu arbítrio e decidir se violo ou não a lei, sabendo que, violando-a, se for acusado e julgado, me sujeito às correspondentes medidas penais. Num horizonte muito restrito de circunstâncias, certas medidas normativas podem dissuadir-me ou mesmo impedir-me de violar a lei, é o caso das medidas de coacção preventiva aplicadas aos arguidos. Ou a vigilância policial, quando prevê a coacção na inibição da prática de certos actos.

Todos também sentimos que, para lá do aspecto e perfil do ‘’corpus’’ legal, no sistema judicial português predomina, sobretudo nos hábitos judiciais, a orientação positivista, tendo-se, em nosso entender tragicamente, ausentado todas as linhas axiais de orientação ética ou moral, que passaram a ser uma espécie de ‘’corpus’’ penal aplicado pela comunidade, cumulativamente, ou em substituição das medidas judiciais.

Ora, no essencial, a indignação que o sistema judicial tem suscitado, quer por parte da comunidade quer por parte das instituições judiciais, refere-se a este espécie de bloqueio, a esta ambiguidade entre o útil e o ético, entre a conveniência do perfil positivista do sistema e a sensação que o próprio sistema transmite do falhanço da sua vocação positivista.

 

O mais caricato exemplo que poderíamos apresentar é o caso de um polícia que no exercício das suas funções tira a vida a um cidadão. Do ponto de vista do direito positivo, o polícia é um homicida e como tal tem que ser acusado e julgado. Mas é injusto acusar e julgar um polícia.

Todavia, o cidadão que alega ser injusto acusar um polícia, se, por acaso, ocorrer tirar ele também uma vida, vai também alegar processualmente tudo o que na perspectiva do perfil positivista do direito puder alegar para se considerar inocente.

 

Ora, do ponto de vista da minha conveniência, como cidadão, eu posso julgar que num dado momento devo violar o segredo de justiça, como acusador ou como acusado. Terei, depois, que justificar em sede de processo as razões porque o fiz. Ou sujeitar-me às consequências penais.

Mas o certo é que os jornalistas, ao fazê-lo, não se sujeitam a consequências penais e nem são obrigados a revelar as suas fontes, ou seja, os seus cúmplices.

 

Dito isto, regressemos então à Procuradora Joana Marques Vidal.

 

Lendo as declarações de Joana Marques Vidal eu não consigo alegar que não seja legítimo que não possa fazer o seguinte raciocínio:

 

A Procuradora, ao defender que os jornalistas devem ou podem estar investidos num estatuto de imunidade que os coloque ao abrigo das escutas telefónicas, parece querer estender aos jornalistas o estatuto de imunidade que protege os magistrados. Porque o que os jornalistas têm feito crer é que o segredo de justiça é fundamentalmente violado pelos magistrados.

 

Será que a Procuradora não conseguiu prever que todos iriam fazer este raciocínio?

 

Mas de seguida a Procuradora coloca assertivamente a hipótese de o sistema ponderar o recurso a buscas nas redacções. E tal parece uma contradição.

 

Pareceria que assim os magistrados tirariam toda a eficácia ao estatuto de imunidade dos jornalistas relativamente a escutas telefónicas.

 

Como eu me recuso a partir do princípio de que a procuradora mergulhasse assim numa contradição tão crassa, tenho que partir de outro.

 

Seja, o de que a Procuradora, no âmbito das suas práticas e hábitos, sabe que o sistema está habilitado a tirar partido prático e positivo da aparente contradição entre estes dois dispositivos normativos. Utilizará o primeiro para reforçar a imunidade dos magistrados, reforçando a imunidade dos jornalistas. Utilizará o segundo para utilizar a expectativa da busca como um meio de pressão e de controlar a violação do segredo de justiça, tornando-o exclusivo dos magistrados.A busca será então utilizada sempre que a violação do segredo não seja da conveniência de serviço.

 

A Procuradora Joana Marques Vidal vai, com certeza, perdoar-me este desaforo. Mas foi ela quem o tornou imperativo. Ela e a sua falta de pudor.

 

A verdade é que as instituições da República se estão a esfrangalhar. Com a cumplicidade de todos. Em nome de um certo pragmaticismo e de uma certa positividade, que legitima sobretudo a base de consenso institucional daqueles que invocam a ‘’legitimidade democrática’’, o regime corporativo está a consolidar-se, reforçando o autoritarismo do Estado e circunscrevendo a base de ‘’entente’’ do regime.

 

Os jornalistas tornaram-se numa instituição supra constitucional e no mais abrangente dispositivo do fazer política.

 

As instituições já mais não fazem do que pousar para as capas de diários e semanários. E compreendemos então por que razão os ‘’assessores de imprensa e comunicação’’ se tornaram nos ‘’pivots’’ de qualquer gabinete, do Presidente da República ao director geral. Mas também dos magistrados.

 

Não, meus senhores. Tanto despudor não vai ficar bem quando um dia escrevermos a história.


 

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1 comentário

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De Manuel de Castro Nunes a 10.01.2014 às 21:54

Se tivéssemos que concluir que os jornalistas são mais isentos do que os magistrados e que os jornais tratam com mais isenção e eficácia dos processos judiciais do que os tribunais, mais valia que lançássemos uma corda em volta do pescoço da nação e nos precipitássemos para um suicídio colectivo.

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