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O lado do Caso BPN que poucos conhecem nos seus trâmites mais profundos, obscurecidos pelos interesses das partes envolvidas. O relevo dado a duas colecções de arte entretanto sem paradeiro, fazendo crer que são motivo de todo o descalabro do caso BPN
Em 13 de Maio de 2011, o Diário de Notícias publicava o seguinte:
‘’Confrontado com dúvidas do presidente do banco quanto à autenticidade da colecção, o poeta, autor de Amélia dos Olhos Doces, desdobrou-se a pedir pareceres técnicos, nomeadamente ao arqueólogo António Cavaleiro Paixão, ligado ao Igespar, e ao historiador Manuel de Castro Nunes, filho do arqueólogo João de Castro Nunes. Estes pareceres atestavam a autenticidade dos materiais, mas foram desvalorizados pelo director do Museu Nacional de Arqueologia (MNA).
Para Luís Raposo, o parecer de Castro Nunes não tem valor científico, uma vez que não é arqueólogo. "Ele próprio não se considera arqueólogo, mas arqueómano (amigo da arqueologia)", disse ao DN. "Um arqueómano pode dizer o que quiser", frisou.
Em contrapartida, a Cavaleiro Paixão é reconhecido mérito científico, mas Luís Raposo recorda que o arqueólogo sofre actualmente de uma doença degenerativa e que na altura em que emitiu o parecer, em 2006, já as suas faculdades estariam afectadas. "É um arqueólogo com uma carreira longa, mas com uma degradação de saúde que faz que não possamos levar a sério os seus pareceres." Quanto às peças de ourivesaria, admite que sejam de ouro. "Mas não significa que tenham sido fabricadas no período em que estão referenciadas", explicitou.
O DN teve acesso a um parecer de Cavaleiro Paixão, em que afirma: "Nenhum dos artefactos oferece quaisquer dúvidas quanto à sua genuidade, apresentando todos eles notável coerência dentro dos períodos cronológicos atribuídos: pré e protó-históricos." Castro Nunes, por seu lado, escreveu: "A análise detalhada dos suportes materiais confirma, sem quaisquer reservas, a procedência documentada".’’
Durante os últimos meses, nomeadamente após as últimas eleições para os seus corpos sociais, a APA, no contexto de uma extensa parceria de conexões em que assume particular destaque a ERA SA, a empresa líder da arqueologia em Portugal, faz um esforço derradeiro para definir e descrever, do ponto de vista corporativo, o estatuto de arqueólogo.
Para tal, conta ainda com um poderoso fórum de difusão da ideologia subjacente aos seus alinhamentos epistemológicos, a tertúlia ARQUEOLOGANDO.
A APA promove também um formulário da iniciativa de ‘’York Archaeological Trust’’ e da Comissão Europeia com o objectivo de caracterizar as condições em que os arqueólogos exercem a sua profissão.
Vamos partir então do pressuposto de que o ‘’arqueólogo’’ que Luís Raposo caracteriza nas suas alegações é um arqueólogo profissional. E que é do estatuto de ‘’arqueólogo profissional’’ que Luís Raposo exclui o Manuel de Castro Nunes.
Luís Raposo não entendeu ou quis omitir o contexto e as razões pelas quais Manuel de Castro Nunes se declarou um ‘’arqueómano’’. Num aceso debate no contexto do qual se recusou a partilhar o estatuto de ‘’arqueólogo profissional’’ que os seus antigos ‘’correligionários’’ arqueólogos entenderam partilhar.
Na verdade, eu gostaria de nunca ter escrito esta nota. As declarações de Luís Raposo nunca afectaram a estima pessoal que sempre tive por ele, são apenas o resultado em que exerce a sua profissão de arqueólogo e ninguém, com toda a certeza, conhece melhor do que eu o que pode impor a um arqueólogo o exercício da profissão.
Mas muito mais do que a Luís Raposo é a outros arqueólogos que dirijo esta. A outros arqueólogos que gostaria também que nunca tivessem que ler esta.
Mas vão ter que ler, agora. O silêncio, a hipocrisia e a mentira, o boato e a traição aos princípios elementares de lealdade há muito que transpuseram os limites do território do aceitável. E os senhores arqueólogos sabiam bem o que me inibia de escrever o que hoje decidi escrever.
Um breve remate a esta introdução.
António Cavaleiro Paixão, a quem Luís Raposo reconhece incontestável mérito científico, segundo os seus critérios, estava no pleno uso das suas faculdades quando emitiu parecer sobre a ‘’colecção egípcia’’. E isso eu posso atestá-lo.
Conheci António Cavaleiro Paixão desde 1975. Em 2005, quando entreguei em mão todos os documentos que tinha recolhido sobre a ‘’colecção egípcia’’, sem qualquer comentário para que ele pudesse fazer o seu próprio juízo, pudemos recordar todo o nosso anterior itinerário de sociabilidade. Encontrava-se, seguramente, no uso de todas as suas faculdades de juízo, já observara a colecção nas instalações do BPN e fez ele próprio alguns comentários que reconheci como bastante lúcidos e pertinentes, mas sobre os quais, por razões de isenção, não me pronunciei.
É que a notícia em epígrafe lavra desde o início numa mentira deliberada, uma vez que o jornalista Licínio Lima já falara antecipadamente comigo. O meu parecer não fora suscitado por dúvida alguma de Oliveira e Costa, era anterior à apresentação da colecção a Oliveira e Costa.
Em minha opinião, as dúvidas de Oliveira e Costa não suscitavam qualquer outro parecer, eram uma artimanha de Oliveira e Costa para burlar o Joaquim Pessoa, aproveitando a intervenção, já denunciada, de um ‘’arqueólogo profissional’’ que alegava que uma certa máscara, a bem dizer a imagem montada com as fotografias de duas máscaras que tinha em seu poder, fora apreendida pela polícia turca na fronteira com o Iraque. E o nome desse ‘’arqueólogo profissional’’ é António Silva, ou ‘’Anton’’.
‘’Um arqueómano pode dizer o que quiser’’ declara Luís Raposo. Que pretenderá Luís Raposo dizer com isto?
Pretenderá declarar que, como ‘’arqueólogo profissional’’ não pode dizer o que quiser? Que estará inibido de dizer o que quisesse ou devesse dizer, por vínculo ao seu estatuto ‘’profissional’’? O que lhe impõe esse vínculo para que não possa dizer o que quiser dizer?
Bem, é bom desde já que fique claro que Luís Raposo nunca viu a colecção, nunca pôde sujeitá-la à prova do tacto, observá-la de todos os ângulos. As únicas imagens a que teve acesso foram as fotos que o Correio da Manhã revelou e que são de minha autoria, constavam do ‘’dossier’’ digital que acompanhava a colecção desde 2004 e foram entregues, em cópia digital, ao IGESPAR e ao IPMC.
A bem dizer, só um arqueólogo as pôde observar, a meu convite e já na sede do BPN, o Amílcar Guerra. Todos os restantes arqueólogos a quem propus expressamente a observação da colecção evitaram fazê-lo, incluindo um que, de acordo com os boatos difundidos, integrou a comissão designada pela Procuradoria Geral da República, em 2009, para emitir parecer sobre o assunto.
Ora, o parecer da comissão então designada não surgiu ainda. Insólito.
O parecer, a partir de 2009, teria que se fundamentar, exclusivamente, nas imagens e nos documentos que produzi, procedendo à análise da sua coerência interna, dado que não era já possível confrontá-los com os artefactos, que estavam já sem acesso nem paradeiro.
Havia então, pois, dois arqueólogos que tinham podido observar a colecção, materialmente e no contexto que entendessem, podendo mesmo requerer, com toda a liberdade, as condições e procedimentos de análise e observação que entendessem. O António Cavaleiro Paixão e o Amílcar Guerra.
Um arqueólogo devia poder dizer o que quisesse. O que o inibe é o seu estatuto profissional e tudo aquilo a que esse estatuto, no contexto das solidariedades corporativas, o vincula. Não são vínculos éticos o que inibe um arqueólogo profissional de dizer o que quer ou deve dizer. São os vínculos corporativos e as solidariedades corporativas.
Importa então agora sujeitar a análise a ideia de que eu não sou um arqueólogo. Não sou um arqueólogo de que ponto de vista?
Para ser sincero, não consigo abordar esta matéria sem um certo orgulho sarcástico.
Um dos temas mais interessantes que irrompeu, durante os últimos anos, na arqueologia portuguesa é o que se tem vindo a revelar em algumas intervenções sob a égide da ERA ARQUEOLOGIA SA, nomeadamente na Herdade dos Perdigões, Reguengos de Monsaraz e no Baixo Alentejo, no contexto do acompanhamento de obras promovidas pela EDIA, reunidas para efeitos de abordagem no tema ‘’Portuguese Prehistoric Enclosures’’.
A descoberta no Alentejo de sepulturas escavadas na rocha, apresentando uma morfologia expressamente associável ao universo das suas congéneres que constituíam a referência da tradicionalmente consagrada cultura ‘’atlântica’’ do litoral estremenho, como um universo restrito e distinto da cultura megalítica das antas, ou ‘’dolmens’’ com intensa expressão no Alentejo, era uma expectativa já aberta desde o fim da década de 1980 e do início da década de 1990, quando começámos a alertar para que, no contexto de estudos aprofundados da tradição eremítica primitiva, tudo fazia crer que um diversificado universo de estruturas funerárias pré históricas tinham sido reutilizadas como refúgio dos eremitas.
E que tal conduziria a uma nova perspectiva de observação de indícios que até então haviam passado despercebidos.Então, nessa altura, eu concentrava a minha atenção na Serra d’Ossa, nas regiões de Viana do Alentejo e de Portel e na Arrábida, propondo, nomeadamente, a observação à luz de novos dados dos refúgios na Serra de São Luís, Setúbal, associados aos conventos de São Paulo e Capuchos de Alferrara.
Tenho acompanhado até à exaustão as últimas campanhas e investigações de ERA. Mas, na verdade, para lá destes aspectos estritamente científicos, quer respeitem à arqueologia quer à história, ou à história da arqueologia, detenho-me em outros, que respeitam ao estatuto da arqueologia e dos arqueólogos. E às condições de exercício da profissão.
Em que contexto decorrem as intervenções arqueológicas que conduziram, sem dúvida, às descobertas mais relevantes da arqueologia portuguesa durante as últimas décadas?
No contexto da relação privada de uma empresa de arqueologia com os seus clientes. Envolvendo sobretudo acompanhamento de obras em curso, nem sequer no âmbito de estudos preliminares de impacto.
Que tem que ver esta constatação com a ‘’colecção egípcia’’?
Bem, senhores arqueólogos. Eu tenho reiteradamente sugerido que essa relação deveria ser debatida com serenidade e nunca em contexto de contencioso. E, como alego, não gostaria de ter que escrever o que agora escrevo.
Eu não sou de facto arqueólogo. Vamos primeiro que tudo saber porque não sou arqueólogo.
Concluí a minha licenciatura em História em 1984. Durante o ano lectivo de 1984/1985 permaneci ainda como professor de Educação Física em Évora, na Escola Secundária André de Resende. Fui colocado como professor do 1º Grupo disciplinar do 2º Ciclo do Ensino Básico na Escola Preparatória de Portel, no ano lectivo de 1985/1986.
Mas, com base talvez no meu currículo, fui admitido, em concurso público, como Assistente Estagiário na Área de Arqueologia Geral de Portugal na Universidade de Évora.
Um dos meus opositores, cuja identidade para este efeito desconheço, mas para o qual seguramente o concurso fora aberto, com o apoio do Coordenador do Departamento, cuja identidade também para este efeito desconheço, impugnou o concurso após decisão do júri. A impugnação não foi aceite e eu, que entretanto já desistira, pois já entendera o perfil da ‘’casa’’, fui coagido pela insistência do então Reitor a tomar posse.
Não sei ainda com que fundamento fui admitido, em concurso público, como Assistente de Arqueologia Geral de Portugal na Universidade de Évora. Assistente de quem?
Na verdade não havia ninguém a quem assistir. Havia por lá outros assistentes admitidos para a Área de História que faziam uns ‘’biscates’’ em arqueologia.
Por lá fiquei, fazendo uma arqueologia à minha maneira, assistindo-me a mim próprio e aos meus colegas. Até 1991.
Não há como interrogar esta questão a fundo. A de saber porque razão não sou arqueólogo e quis ser arqueómano. E a razão de não ter partilhado com os arqueólogos as obscenidades que conduziram ao triunfo do modelo vigente no exercício da profissão.
Esta nota será extensa. Mas quando estiver concluída ficará claro como água o que pode dizer um arqueómano e o que pode dizer um arqueólogo profissional. Ficará clara a razão porque gostaria de nunca ter escrito isto. E a razão porque aos arqueólogos foi tão oportuno que uma dada ‘’colecção egípcia’’ se sumisse sem que ninguém a reclamasse porque era falsa.
Foto: 'Ídolo pré histórico proveniente da Herdade dos Perdigões
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